terça-feira, 3 de julho de 2007

ENTREVISTA


JOANA VASCONCELOS

A ORIGINALIDADE DOS MATERIAIS


Joana Vasconcelos e a sua obra DOROTHY realizada com panelas de alumínio,
no Palazzo Nani Bernardo Lucheschi na Bienal de Veneza 2007


Artista plástica portuguesa, nascida em Paris há 35 anos e vencedora de vários prémios, Joana Vasconcelos é uma apaixonada pelos símbolos da cultura portuguesa acabando por se ver recompensada nesta paixão com o convite expresso para que o seu “Coração Independente” represente a arte nacional, em Bruxelas, na Presidência Portuguesa da União Europeia. No seu trabalho utiliza objectos do quotidiano que retira do uso habitual, e com a sua repetição e acumulação numa obra de grande escala, nas palavras da artista “faz desaparecer o material para chegar ao conceito, à abstracção. É o conceito subjacente que tem mais força. O material que uso é apenas um meio e não um fim”.

MJ - Desde sempre trabalhou com instalações e no seminário que veio realizar aqui ao Porto na Universidade Católica, contou-nos uma série de peripécias que lhe têm acontecido. Manifesta algumas preocupações com a conservação dos seus trabalhos mas é uma questão que não foi aprofundada. O que é que a Joana entende da conservação das suas obras? Seja ao nível preventivo, seja ao nível da intervenção?

JV - Para começar, essa é uma falsa questão pois não existe durabilidade eterna para nenhuma obra. Veja o caso da capela sistina. Há uma degradação real mas continua a ser uma obra magnífica. O problema no restauro é manter as obras o mais possível no seu estado original e pelo mais tempo possível. Quando restauraram a capela sistina as pessoas ficaram chocadas com as cores mas a capela em si manteve-se fantástica. O conceito sempre esteve lá com cores desbotadas ou não.

Eu tenho sempre a preocupação de precaver a deterioração das minhas obras e deixo sempre o material necessário para que durante ainda, mais ou menos, 3 gerações se possam fazer substituições. E eu uso materiais actuais, da contemporaneidade, não são materiais antigos difíceis de encontrar. Tento sempre ficar com grande quantidades de material mas não posso ser futurologista. Sei lá o que vai acontecer daqui a 100 ou 120 anos... Veja o caso da pintura a têmpera, por exemplo. Hoje em dia já praticamente ninguém pinta a têmpera. Também há profissões que desaparecem. Isto faz parte da vida, não é?


Mas não posso fazer futurologia. Não podemos saber se levamos com um Tsunami e tudo desaparece. Imagine por exemplo que há uma inundação nas caves dum coleccionador. Se ele tiver dinheiro refaz-se a peça, se não tiver, olhe... acaba aí.

Se calhar, às vezes é melhor deixar morrer a obra. Por isso é que importante fazer o registo das obras. Boas fotografias, bons videos. E se a peça acabar, permanecem os seus registos.

MJ - Lembro-me da história dos seus castiçais realizados com garrafas de saké "MESSAGE IN A BOTTLE" que fez para um evento no Japão em 2006 e sei que deixou lá garrafas a mais para ir substituindo as que se forem partindo. Qualquer pessoa as pode substituir? Esse processo é deliberadamente simples para permitir que qualquer pessoa o faça? E quando acabarem as garrafas de saké? Aceita que se coloque uma outra garrafa qualquer ou prefere deixar a peça, digamos que, mutilada?


MESSAGE IN A BOTTLE – 2006
Ferro galvanizado, garrafas de sake, sistema eléctrico e LEDs de alta densidade.650 x 350 cm


JV - Esta peça tem a ver com o problema do alcoolismo que é muito sério no Japão. Por regra, deixo sempre ficar no cliente outro tanto do material que utilizei a fazer a peça. No entanto, in extremis, se realmente as garrafas acabarem, se houver outras que respondam e mantenham o conceito, pois tudo bem, porque o que interessa é manter o conceito da obra.

MJ - Fez uma obra com a colecção de gravatas de um industrial seu cliente, a "AIRFLOW". Se alguma se estraga é o cliente que escolhe uma nova gravata ou a Joana quer ter parte activa nessa escolha? E mais uma vez, quem faz a substituição? E se a Joana não estiver?


AIRFLOW – 2001
Ferro, material eléctrico, ventoinhas e gravatas de seda natural.
224 x 165 x 155 cm


JV - Sou eu que terei que escolher a gravata. Fiz uma selecção estética, com uma certa ordem, das gravatas por temas: animais, cidade, campo, abstractas, ect. Vou lá e procuro uma que faça sentido e cuja cor se adapte ao conjunto da obra.

MJ - Outra questão que eu gostaria de lhe colocar seria ao nível da ética e dos valores morais. Como reagiria se um cliente seu decidisse fazer por moto próprio o restauro a uma peça sua, ou pura e simplesmente resolvesse fazer alterações à sua obra? Por exemplo, o carrossel "PONTO DE ENCONTRO" que fez para a Exposição no Museu de Are Contemporânea de Serralves no ano de 2000? Esta peça foi realizada numa alusão ao Conselho de Administração, com cadeiras, todas diferentes, de designers famosos. Se uma cadeira se estragasse e não conseguissem arranjar uma igual?


PONTO DE ENCONTRO – 2000
Ferro metalizado e cromado, napa e tecidos
550 x 550 x 120 cm.


JV - Ora bom, qualquer intervenção nas minhas peças tem que passar por mim. Agora, no caso do carrossel, se chegarem ao pé de mim, me disserem que aquela cadeira já não existe e me propuserem outra em sua substituição e que respeite o sentido conceptual da peça, porque não?
O foco não deve ser posto na material. O foco deve estar no conceito e na intenção da obra. Há muitas peças que conceptualmente não funcionam se lhes trocarmos os materiais, e outras há para as quais é fácil arranjar substituições.

MJ - Há uma obra sua que foi muito dura de realizar. Estou a falar da “NOIVA” que, embora sendo uma peça de 2001, foi o trabalho seleccionado para a Bienal de Veneza de 2005. O plástico que reveste os tampões vai necessariamente envelhecer e a peça vai ter um comportamento diferente à luz. Como encara essa situação?

A NOIVA – 2001
Aço inox e tampões OB.
600 x 350 x 350 cm


JV - Enquanto houver tampões, refaz-se a peça. Haja mãozinhas para a refazer. Por princípio não refaço peças mas imagine que daqui a 50 anos querem fazer uma exposição para a qual é importante ter esta ou outra peça que já não esteja em condições. Posso decidir fazer uma nova; destruo a anterior e faço rigorosamente a mesma coisa. Volto a dizer, o problema não está no material; está na intenção.

MJ - A Joana fez uma peça fantástica para a ARCO 07, o "CORAÇÃO INDEPENDENTE". É uma peça que alia o passado e o presente, a tradição e a contemporaneidade, pelos materiais utilizados: talheres de plástico. Conseguiu realiza-lo porque também aprendeu joalharia e aprendeu a fazer filigrana. Já tinha feito um amarelo e um vermelho, mas este preto da Arco é mais completo porque gira, está dentro duma espécie de cubo vermelho e tem música de fundo. Esta peça requer conhecimentos técnicos para o seu funcionamento; se o sistema avaria como resolve para o repor em marcha?





CORAÇÃO INDEPENDENTE – ARCO, Madrid 2007
Realizado com talheres de plástico e com fundo musical cantado por Amália Rodrigues.


JV - A peça vem à oficina. Como é que faz quando o seu carro avaria? O meu atelier é uma oficina. A avaria é reparada e a peça é devolvida.

Essas peças estão ligadas à trilogia do fado: Ouro, Sangue e Morte. O coração Amarelo, por exemplo, veio agora do restaurante Eleven para onde foi feito e vai, emprestado, para Bruxelas para ser o símbolo da Presidência portuguesa durante os próximos 6 meses. Neste momento está aqui no atelier para fazer a revisão e uma limpeza e vai seguir para Bruxelas para cumprir a sua função presidencial. Depois volta ao seu lugar no restaurante Eleven. Vai sempre um técnico meu a acompanhar a peça, para a montar e por a funcionar.

MJ - A Joana aceita que a sua obra lhe possa sobreviver, não? Em toda a entrevista notei que só permite intervenção numa obra sua desde que seja respeitado o conceito, o que depende muito de si. Como prevê esse controle quando já não o puder fazer?

Nas palavras de uma sua assistente, as peças perduram para além dela nem que seja em registo fotográfico ou outro, portanto a obra continua a existir só que na forma de registo, porque o que interessa à artista é que o seu conceito perdure.
Dá como exemplo o caso do sapato “DOROTHY” exposto na bienal de Veneza deste ano, para o qual a artista teve o cuidado de encomendar o dobro dos tachos para ir substituindo à medida que haja necessidade. Noutro exemplo, a “NOIVA”, no entanto, se daqui a 100 anos deixarem de existir tampões, paciência, ficam a faltar peças mas a obra permanecerá em registo, seja ele de que natureza for. No seu atelier verifica-se uma preocupação com a conservação e restauro mas todos, sobretudo a artista, estão conscientes de que este cuidado também tem um tempo de validade.
As obras de Joana Vasconcelos perduram, como conceitos, com imagens para além das peças.

Nenhum comentário: